sexta-feira, 18 de março de 2011

passou

daquele amor que o
demo esculpiu do açúcar
já não engasgo mais
dele me mudei de estado
enquanto o bicho me tomava
tripas até o embaçar dos olhos

mudei

mudei da idade, mudei do corpo que abrigou o teu, mudei da casa em que te recebi, mudei do carro, do itinerário e da tua direção; enquanto roía, mudei de roupa, sapato e profissão. mudei de música, de livro e de igreja. mudei o dia do supermercado e meu jeito de pedir café. mudei de ângulos e remédios, mudei das dores e da poesia, dos livros de deixei na estante, da revista semanal e do diário da manhã. mudei as páginas da folhinha na parede, mudei das telas e do tannat que nunca nem mais bebi.

enquanto corria, mudei do tempo em que te conheci, mudei daquelas palavras que te falei, mudei da música que compus, das melodias sob o chuveiro, de marca de cerveja, de restaurante e do parmeggiana naquela cantina antiga. mudei de aspecto, de humor e de semblante. mudei de cinema e do programa de televisão. mudei as teorias e o partido, meu jeito de ler Guimarães e o parque que frequentava.

do amor que cuspiu só os pedaços do mastigado de mim, mudei as vozes, as juras, as lágrimas e os gritos daquele impossível; mudei de espera, de esquina, de bairro e da marca de cigarro que nunca fumei. mudei de cama, de armário, das roupas nos cabides, das pizzas que escolhia, mudei a marca do meu perfume e a lembrança que tinha do teu.

mudei o tom, os olhos, o amarelo dos dentes e os gritos nos dias do futebol. mudei o creme de barbear e os destinos das viagens. mudei as perguntas, pra mudar desde o que se chamava lá até isto que agora me chama aqui. e mudei um bocado, ora aos trancos, ora leito, torto ou certo, mudei dos dias de chuva e das horas enrolaradas que me queimei de ti.

mudei o jeito de tomar fôlego e de pedir perdão, mudei os objetos que colecionava, o correio eletrônico e a marca da cachaça. mudei de estação em estação, até que num dia quente em que já ia alegre, numa quinta-feira de um mês que me esqueci, fui me dar no espelho que eu já nem era eu, aquele um que ia distante então pelas costas. mudei o contrato e os móveis ao meu redor, e foi tanto, e foi tanto, e foi tanto, até que fui me ver aos risos em uma casa nova cheia de flores e discos, para ali poder descansar de tanto tempo de não ser, para ancorar firme e sereno, nada além de um inquilino de mim.

4 comentários:

SH disse...

As abstrações do passado, a gente desconsidera
nas fotografias da memória.
Então, qual o sentido de se lembrar sempre o que deveria ser esquecimento,
mesmo quando a vida é passada a limpo?

Carolina CM. disse...

Cuánto tiempo!
Recordé que escribías y decidí pasar a ver lo nuevo, grata sorpresa...
Los versos, comprensibles para cualquier alma humana, incluso para una tan escéptica como la mía, reflejan una realidad y al mismo tiempo, representan una ruta de escape...

Un saludo en tu cumpleaños, también me acordé...

Martina disse...

Ai, Roger, que bonito.
Me faz pensar que intensidade é tão bonita quando tem ritmo.
Que rebolado!
bj da sua amiga

Martina disse...

Ai, Roger, que bonito.
Me faz pensar que intensidade é tão bonita quando tem ritmo.
Que rebolado!
bj da sua amiga